
Devias ter nascido amanhã. Dia 23 de Fevereiro.
No dia 18 de Junho, a manhã confirmou a tua vinda. Um teste, na casa de banho, e o coração nas mãos. Sem saber se deveria rir ou chorar. Com toda a minha vida centrada em duas riscas cor-de-rosa. O teu pai, na sala, respeitando a minha intimidade. Sentada no tampo da sanita atenta aos minutos que passavam e a ver nascer uma confirmação forte e bem marcada no mostrador do teste. Saí com ele na mão.
«Vês? Eu sabia que estava grávida.». O teu pai a destilar alegria. Eu sem saber o que dizer. De sorriso idiota no rosto... o primeiro dia do resto, de tudo o resto.
O teu pai perguntou se eu estava contente. Não soube responder com determinação. Foste planeada. Muito desejada. E agora?
Marquei com a S. consulta para esse dia. Carreguei um tripé nessa tarde de trabalho e mal podia em mim de satisfação. Um crescendo de contentamento que ao longo do dia me foi enchendo, rebentando-me as costuras.
Entrei no consultório com a S. a rir. Muito. Só me recordo com clareza da frase
«Ai, não acredito... com 5 semanas e já se ouve o coração. Olha só...» E um ponto, um dot, uma mancha no écran a pulsar. Só se ouvia... Bum, bum, bum, bum, bum... com o ritmo assustador, cheio de vontade. Devias nascer no dia 23 de Fevereiro. Ali ficou determinado, no monitor do ecógrafo. Dia 23 de Fevereiro. Data provável do parto. Era uma da manhã. Ligámos a mundo... mesmo assim, telefonámos ao mundo.
Porque a S. permitiu, embarquei no dia seguinte para Cabo Verde. Um fim-de-semana, rápido, de trabalho... sem esforço físico. Fui e por lá notei um corrimento... escuro. Voltei e continuou... escuro. Terça-feira seguinte deixei o provador da Lanidor, as roupas por comprar espalhadas no chão e um medo corrosivo na garganta.
Devias nascer a 23 de Fevereiro.
Entrei na Estefânia. Urgências de Maternidade. O Hospital mais próximo... numa sala repleta de médicos e enfermeiros... sentados, lá foram dizendo... «
Sabe que este não é o seu Hospital de residência não sabe?»... estava com perdas de sangue... estava com perdas de sangue, por favor... A médica, com cara de poucos amigos, deixou um chorrilho de frases ignóbeis na minha memória: «
Conte lá...», «Dispa-se e deite-se na marquesa»... «Colo fechado mas com corrimento de sangue, sim. Pois é uma ameaça de aborto.»... «Ai a sua médica foi a Londres a uma conferência sobre ecos a 3D? Ai, para isso também se vai a conferências?»... «Agora? Então, agora, quando ela vier lá de Londres... vá a uma consulta com ela!!»... «Descanso é tudo o que lhe receito. Nesta altura do campeonato não pode tomar nada.»- Há alguma coisa que eu possa fazer além do descanso?
Uma enfermeira, que continuou sentada desde a minha chegada, soube quebrar-me em estilhaços.
«Então, agora é a natureza que decide»Devias ter nascido a 23 de Fevereiro.
Fui para casa com uma cascata de lágrimas trancada no peito. Deitei-me no sofá. Ali fiquei, com poucas palavras, que qualquer uma arrancava facilmente um soluço. Mandei umas mensagens e durante dias não atendi telefonemas. Quando a S. voltou confirmou-se o descolamento de placenta.
Parou a hemorragia. Prescrição? Sossego, descanso, magnésio e óvulos de progesterona. Ficámos em casa 3 meses. Enfiadas no sofá, na cama, na angústia. Na angústia da próxima consulta... semanal... depois quinzenal. Pilhas de ecografias. Um pai extremoso... um marido inigualável. Litros de água à minha beira, bolachas, mimos, telemóvel, lençól fresco, comando da TV, telemóvel e almoço feito no microondas. Partia e deixava-me só. Partia ele com o peitinho apertado. O telefone tocava a toda a hora. Chegavam as mensagens. Pedia que me visitassem.
Devias nascer a 23 de Fevereiro.
Em Agosto o papel higiénico chegou ensopado num coágulo. Convenci-me do pior no caminho que fiz até à sala. Avisei o teu pai... fomos à S. que nos quis ver antes de me enviar para um hospital. E hospital era sinónimo de raspagem... curetagem... aspiração... A S. ouviu o Bum, bum, bum, bum. Outro descolamento e tu alheia. Crescendo. Forte. Grande.
Uma placenta baixa. Dores. Urgência CUF Descobertas. Contracções. Descanso... descanso e uma ansiedade crescente. Valdispert. Nausef tinha um efeito mais soporífero... Adormecia-me.
Bum, bum, bum, bum, bum.
Devias nascer a 23 de Fevereiro.
Deste a volta em Outubro. Doeu. Senti-te em toda a "pujança ginastical". Aturaram-me a ciclotimia. O receio das trissomias e das manias. Das doenças e demências.
Dois CTG's em Santa Maria e a perda da dignidade, da vergonha do meu corpo a estranhos e alheios. Toques e análises, exsudados e depilações.
Devias ter nascido dia 23 de Fevereiro.
A 27 de Janeiro, o líquido amniótico escasseava... a piscina ficava pequena... seca. Amanhã. A S. avisa. Tem de ser amanhã. Decide. Amanhã no Barreiro ou Domingo na Cruz Vermelha. Amanhã... vai ser amanhã.
Mas devias nascer a 23 de Fevereiro.
Nasceste a 28 de Janeiro.
Devias nascer amanhã e tens quase um mês.
Vieste mais cedo...
A bacana que me arranhava a barriga devia ter nascido a 23 de Fevereiro. Veio mais cedo para nos adoçar a vida.
Amanhã acho que vou chorar.